No dia 14 de dezembro de 2017, foi apresentado na Câmara dos Deputados o relatório do Deputado Expedito Netto, com Substitutivo ao PL 2.303/2015, de autoria do Deputado Áureo, que dispõe sobre a inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aérea na definição de “arranjos de pagamento” sob a supervisão do Banco Central (Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013).

O referido documento constitui um verdadeiro revés contra aqueles que são favoráveis à admissibilidade das criptomoedas e dos tokens, não apenas porque pretende proibir, mas também por tentar criminalizar o lançamento, comercialização, intermediação e aceitação como meio de pagamento destes ativos virtuais.

Segundo o relator, as moedas virtuais, representam uma verdadeira invasão ao Sistema Monetário Nacional, violando preceitos constitucionais que garantem ao Banco Central o monopólio quanto à emissão da moeda, ainda que em formato digital.

Para efeito de legitimação do seu entendimento, o parlamentar fez referência ao Comunicado n.º 31.379, de 16 de novembro de 2017, do BACEN, que alerta sobre os riscos das operações dessa natureza.

Também citou as declarações de Joseph Stiglitz (Prêmio Nobel de Economia), que não vê outra intenção dos investidores em moedas digitais além da prática de ilícitos. Neste sentido, ao final, defendeu a aprovação do projeto de lei em comento, desde que em conformidade com as alterações anexadas ao voto.

Ocorre que, surpreendentemente, o substitutivo ao PL 2.303/2015 não tem o escopo de complementar o texto original, mas sim descaracterizá-lo por completo. Entre outras medidas, propõe considerar as moedas virtuais como representações digitais de valor sem curso legal no Brasil e no exterior.

Como efeito, procura inseri-las no contexto dos crimes contra a fé pública, previstos no Capítulo I, Título X, do Código Penal, acrescentando ao art. 292 o parágrafo primeiro, que traz a seguinte redação:

“Incide na mesma pena quem, sem permissão legal, emite, intermedeia troca, armazena para terceiros, realiza troca por moeda de curso legal no País ou moeda estrangeira, moeda digital, moeda virtual ou criptomoedas que não seja emitida pelo Banco Central do Brasil”.

Mais uma vez, o Congresso Nacional procura dar tratamento penal a todos os problemas que não consegue resolver, como se os conflitos pudessem ser solucionados pela via irracional da constrição da liberdade, que configura o único direito que falta ser retirado daqueles que só pagam sem nada receber.

Ignora um dos balizadores no âmbito do Direito Penal, traduzido pelos princípios da subsidiariedades e fragmentariedade, segundo o qual somente as lesões mais graves aos bens de suma importância para a vida em sociedade merecem ser tipificadas como infração penal. As demais violações ao ordenamento jurídico devem ser reguladas por normas extrapenais, nos limites das sanções de cunho administrativo.

Aliás, a histeria coletiva que hoje afeta a sociedade brasileira, no sentido de supervalorizar o cárcere para não ter de enfrentar os fatores motivadores da delinquência, só tem o condão de gerar demandas judiciais, como se não bastassem os mais de cem milhões de processos que já tramitam nos tribunais.

Onera ainda mais os cofres públicos, em função do aumento das despesas com o sistema prisional, e eleva o Brasil à lamentável condição de terceira população carcerária do planeta, perdendo somente para países como os Estados Unidos e China.

No caso das moedas virtuais, a criminalização sugerida ainda se mostra mais grave do que qualquer outra realizada nos últimos anos, tendo em vista a medida se revelar tão precipitada quanto ilegítima, inútil e abusiva.

O primeiro aspecto que deve ser levado em consideração está na própria natureza das moedas virtuais, também conhecidas como moedas digitais ou criptomoedas. Na realidade, não são de fato moedas, considerando que não passam por controle estatal, nem possuem reserva de valor baseada em condições macroeconômicas de um país, como capacidade de pagar dívida externa e interna, a exemplo das letras do tesouro nacional – LTNs.

O próprio Banco Central, no comunicado acima mencionado, declara que “a denominada moeda virtual não se confunde com a definição de moeda eletrônica”. Explica que esta última não passa de “um modo de expressão de créditos denominados em reais”, ao contrário das chamadas moedas virtuais, que “não são referenciadas em reais ou em outras moedas estabelecidas por governos soberanos.”.

Portanto, à luz do que foi exposto pelo Banco Central, devem ser concebidas apenas como um meio de troca que se utiliza de criptografia para a realização de transações online, de forma anônima e livre de taxas moderadoras provenientes de instituições financeiras. Em suma, conforme estabelece a Receita Federal, seriam simplesmente ativos.

Por essa razão, ainda que fosse razoável penalizar a sua utilização, jamais poderia vir a ser disciplinada no capítulo do Código Penal intitulado “Da Moeda Falsa”, nem mesmo pelo método da equiparação, como ocorre nos casos dos títulos ao portador.

Aliás, não seria cabível a inserção em qualquer outra parte do mesmo diploma legal ou de lei extravagante, porque a cobiça monopolista dos bancos, em um Estado de Direito, jamais poderá ser apontado como objeto jurídico de algum crime. Não existe o falso, porque quem compra as criptomoedas não pensa estar adquirindo moeda estatal, e é ciente dos riscos inerentes aos negócios do mundo capitalista.

E por falar em risco, o que originou a moeda virtual foi, justamente, o clima de desconfiança instituído pelo sistema financeiro internacional, que apesar de toda a regulação, não foi capaz de deter os colapsos econômicos eclodidos em 1930, 1997 (Ásia), 2000 (NASDAQ) e 2008 (responsável pelo grande endividamento dos governos). Somente no Brasil, nos últimos cinquenta anos, a moeda nacional mudou sete vezes.

É imponderável admitir que o Estado venha dar o status de delito a uma atividade econômica pelo simples fato de não saber lidar com ela, não havendo sequer como justificar uma resposta penal enquanto não se vislumbra eventuais danos em potencial.

Ao contrário do que possam parecer, as transações feitas com moedas virtuais viabilizam maior grau de transparência e imutabilidade de registro do que as operações sigilosas realizadas por bancos públicos e privados. Os portadores agem por intermédio de blocos com criptografia assimétrica que permitem o rastreamento por parte das autoridades em caso de suspeita de fraude.

No que diz respeito à possibilidade de as criptomoedas serem usadas como instrumento de lavagem de dinheiro, o argumento é absolutamente vazio.

É evidente que qualquer pessoa poderá se valer do mundo virtual para lavar dinheiro, mas convém lembrar que esse crime pode ser praticado de inúmeras formas, pois o art. 1.º, caput, da Lei 9.613/98, apresenta como núcleos do tipo os verbos “ocultar” ou “dissimular” a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

Ora, para que haja a subsunção do fato material à descrição da conduta punível, basta que o agente, por exemplo, esconda dinheiro advindo do tráfico de drogas debaixo do seu colchão. E tal possibilidade não induz a pensar ser razoável a intervenção estatal no sentido de determinar o fechamento de todas as empresas que comercializam esse tipo de mercadoria.

Presume-se que o indivíduo ao entrar em uma loja especializada em colchões esteja querendo um objeto que promova o melhor descanso para o seu corpo, e não um bom esconderijo para o seu dinheiro. Quem se corrompe é o homem, e não a coisa da qual se utiliza.

Se o projeto de lei que dispõe sobre as criptomoedas sucumbir ao substitutivo acima discutido, continuaremos marchando na contramão da história para nos posicionarmos à margem do mundo globalizado, no estilo da nossa vizinha Venezuela, que após a severa repressão os mineradores de criptomoedas, agora se apropria da iniciativa, inserindo no mercado a sua moeda digital, o Petro.

Se adotarmos a postura do Substitutivo em tela, vamos nos rebelar contra o inevitável, uma vez que o encrudescimento da legislação pátria não impedirá que as moedas virtuais sigam o seu curso normal. Elas se valorizam em progressão geométrica, de forma proporcional ao seu requinte tecnológico e grau de desconfiança em relação aos Estados.

A sua marginalização fará com que passe a valer ainda mais, como ocorreu na China, depois de tomadas as respectivas medidas proibitivas. E assim, deixaremos de desenvolver negócios como as Exchanges, que promovem a inclusão financeira com taxas muito mais acessíveis do que as oferecidas pelos bancos e corretoras.

Abdicaremos do efeito multiplicador da tecnologia Blockchain, que por ser distribuída e transparente, altamente protegida de eventuais cyberattacks, pode revolucionar os registros e torná-los intercontinentais.

Enfim, ficaremos ainda mais distantes das potências vanguardistas no campo digital como Japão, Cingapura, Israel, EUA e Canadá. Enquanto o mundo avança no desenvolvimento das criptomoedas, abrindo novas perspectivas econômicas, o Brasil se contenta com seu obtuso “criptopenal”. Resta, agora, saber a quem interessa barrar a lisura global de valores e identidade.

Parece que o governador Geraldo Alckmin entendeu o conceito inovador das criptomoedas, do Blockchain e dos Smart Contracts, pois adotou estes três conceitos para financiar o projeto Ilumina São Paulo, que irá beneficiar a população de diversos municípios.

Espera-se que as demais unidades da federação possam seguir o exemplo paulistano e que os avanços de entendimento conquistados nas audiências da Comissão Especial criada para apreciar o Projeto de Lei 2.303/2015, por iniciativa do Deputado Áureo, não sejam castrados pela inoportuna manobra em curso no Congresso Nacional.

1 COMENTÁRIO

  1. Houve um erro quanto à autoria do texto acima. O artigo “Criiptopenal: a apropriação das moedas virtuais” foi escrito por Sergio Ricardo do Amaral Gurgel e Viviane Amaral Gurgel.

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